A regulamentação ética de pesquisas científicas começou em 1931, na Alemanha, quando foram definidas as 14 diretrizes para pesquisa com participação de humanos. Estas diretrizes representavam um conjunto de instruções a serem seguidas por pesquisadores que fossem realizar pesquisas com humanos. Dentre essas normas, por exemplo, era exigido que alterações do projeto inicial proposto, bem como a participação de pessoas vulneráveis fossem sempre justificadas.

No entanto, essas diretrizes não receberam muita atenção e não foram suficientes para impedirem que ocorresse o que foi chamado de “pesquisa científica” durante o período do nazismo. Aqui a expressão “pesquisa científica” está entre aspas propositalmente, pois o que aconteceu durante o nazismo, não foram pesquisas, mas sim abusos contra a vida e a dignidade de seres humanos.

O nazismo ocorreu entre os anos de 1933 e 1945, período em que foram cometidas atrocidades contra os seres humanos através da realização de experimentos que eram feitos por médicos que tinham como objetivo, supostamente, ajudar na guerra através do desenvolvimento de novas armas e na recuperação de militares feridos. Diante disso, seres humanos foram literalmente usados, pois eram submetidos a várias situações chamadas de “experimentos”: congelamento de pessoas, ensaios com gêmeos, infecções propositais, vivissecção (operações realizadas em pessoas vivas para estudo de sua anatomia e fisiologia), esterilização, eutanásia de doentes considerados incuráveis, dentre outras práticas.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1947, em Nuremberg, na Alemanha, aconteceu o julgamento de 117 pessoas acusadas de terem cometido crimes durante o período do nazismo. Todos foram classificados como criminosos de guerra e foram julgados por juízes americanos. Esse evento ficou conhecido como o Tribunal de Nuremberg. Foram realizados 12 julgamentos que resultaram em 7 condenações à morte, 9 prisões e 7 absolvições. Além disso, ficou estabelecido o Código de Nuremberg, considerado um marco para a humanidade, pois se estabeleceu a recomendação internacional sobre os aspectos éticos de pesquisas envolvendo a participação de humanos.

Foi através deste código que ficou estabelecida a necessidade de haver a concordância dos voluntários da pesquisa na sua participação nos experimentos propostos, após compreender todos os benefícios e riscos da pesquisa, ou seja, este documento determinou a necessidade de todo pesquisador informar seu voluntário sobre todas as etapas às quais ele seria submetido, além de apresentar a ele os possíveis riscos aos quais ele estaria exposto e os benefícios que ele receberia por participar desta pesquisa. Assim, pela primeira vez, determinou-se que as pessoas precisavam ser esclarecidas sobre a pesquisa para então decidirem se gostariam ou não de participar como voluntárias.

Depois, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a Declaração Universal dos Direitos dos Humanos definindo, em seu primeiro artigo, que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

Mais tarde, em 1964 foi publicada a Declaração de Helsinki, escrita pela Associação Médica Mundial. Esse documento oferecia orientações aos médicos que também fossem pesquisadores e realizassem pesquisas com humanos.

A Declaração de Helsinki passou por 9 revisões ao longo dos anos (sendo a última no ano de 2013 no Brasil). O nosso país deixou de ser signatário da declaração em 2008, ou seja, deixou de assinar este documento por causa de algumas propostas da declaração que não são aceitas pelo Brasil. Por isso, nosso país não considera esse documento nos nossos processos de regulamentação ética.

Mesmo com a publicação de todos esses documentos, vários estudos que não valorizavam e respeitavam o ser humano ainda continuaram a ser realizados. Um estudo muito famoso e conhecido mundialmente foi o que ficou conhecido como “Estudo de Tuskegee”, realizado entre os anos de 1932 e 1972, nos Estados Unidos. O objetivo era documentar a história natural da sífilis não tratada. Assim, mesmo com a descoberta da penicilina e indicação de seu uso para tratamento de casos de sífilis (ocorrido em 1947), o estudo continuou sem ofertar este medicamento aos homens voluntários da pesquisa. Este estudo foi denunciado em 1972 pelo jornal americano The New York Times. A partir desta denúncia, houve a formação da National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, uma comissão nacional que, com base nas falhas éticas do Estudo de Tuskegee (e também de outras pesquisas realizadas nos EUA com idosos e crianças), apresentou em 1978 o Relatório de Belmont.

O Relatório de Belmont apresentava princípios éticos e orientações para proteção ao participante de pesquisa. Este relatório identificava e definia três princípios éticos como sendo fundamentais: o respeito às pessoas (autonomia), a beneficência e a justiça. Em 1979 houve a publicação da obra Principles of Biomedical Ethics, que apresentava o acréscimo do princípio da não-maleficência aos conceitos éticos já apresentados no Relatório de Belmont.

No Brasil, no ano de 1988, através da Resolução CNS nº 01/88, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou as normas para regulamentação de pesquisas em saúde e definiu que toda pesquisa científica deveria ser aprovada pelo Comitê de Ética da instituição de atenção à saúde, devidamente credenciado pelo CNS. Dessa forma, esta resolução determinou a necessidade da composição de Comitês de Ética para avaliar e acompanhar as pesquisas envolvendo seres humanos em todo território brasileiro.

Em 1996, a Resolução CNS nº 01/88 foi substituída pela Resolução CNS nº 196/96 que aprovou normas regulamentadoras para a realização das pesquisas envolvendo seres humanos. Juntamente com esta nova resolução também houve a criação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que atua até hoje junto ao CNS na regulamentação das pesquisas com seres humanos em todo Brasil.

No ano de 2012 foi homologada a Resolução CNS nº 466/12 (substituindo a resolução CNS nº 196/96). Esta resolução está em vigor até os dias atuais. Em 2016 ocorreu a publicação da resolução CNS nº 510/16, que apresenta as normas aplicáveis às pesquisas na área de Ciências Humanas e Sociais, uma vez que essa área apresenta metodologias diferentes daquelas previstas na resolução anterior, que é mais adequada para as pesquisas biomédicas.

Importante: embora a Resolução CNS nº 510/16 seja específica para a área de Ciências Humanas e Sociais, isto não significa que um pesquisador desta área não precise conhecer a Resolução CNS nº 466/12! Ambas são as resoluções básicas que devem ser conhecidas pelos pesquisadores brasileiros. Existem ainda outras resoluções do CNS que são complementares a estas duas e que devem ser consideradas, dependendo do tipo de pesquisa a ser realizada. Você pode acessar todos estes documentos no site do CNS clicando aqui.

Como vimos até aqui, todas as discussões, definições e publicações que aconteceram ao longo da história foram extremamente necessárias para que as pesquisas científicas com seres humanos pudessem ser realizadas com respeito ao voluntário de pesquisa. No nosso próximo texto falaremos sobre o funcionamento do Sistema CEP/CONEP no nosso país e como ocorre a aprovação e acompanhamento das pesquisas com participação com seres humanos no Brasil.

Por Cínthia Hoch B. de Souza

cinthiahoch@yahoo.com.br

Referências:

ALBUQUERQUE, A. Para uma ética em pesquisa fundada nos Direitos Humanos. Revista Bioética, Brasília, v.21, n.3, p.412-22, 2013.

DINIZ, D.; CORRÊA, M. Declaração de Helsinki: relativismo e vulnerabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.17, n.3, p.679-688, 2001.

LO, B.; GRADY, D.G. Abordando questões éticas. In: HULLEY, S.B. et al. Delineando a pesquisa clínica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015

MARKMAN, J.R.; MARKMAN, M. Running an ethical trial 60 years after the Nuremberg Code. Lancet Oncology, v.8, p.1139–1146, 2007.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Documentos de direitos humanos. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em 12 fev. 2021.

PARANHOS, F.R.L.; GARRAFA, V.; MELO, R. L. Critical analysis of the principle of benefit and harm. Revista Bioética, Brasília, v.23, n.1, p.12-19, 2015.

Imagem de capa: Pixabay.

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