Parte I: a descoberta e o sequenciamento do vírus
Ao longo dos anos especialistas já alertavam para o surgimento de uma nova pandemia causada por um agente infeccioso que se espalharia facilmente pelo ar e provocaria a morte de muitas pessoas. O desmatamento, a destruição dos habitats naturais e a proximidade dos animais silvestres (reservatórios naturais de inúmeros vírus e bactérias) com a população humana são ingredientes perfeitos para um novo patógeno “pular” da natureza e chegar até nós. Dentro do nosso corpo, sem sistema imune treinado para se defender, o patógeno provoca um caos. O novo coronavírus, chamado oficialmente de SARS-CoV-2, está aí para nos provar isso.
Bastaram alguns meses para que o novo coronavírus chegasse em praticamente todas as partes do mundo, facilitado – é claro – pela própria globalização, por viajantes assintomáticos e até pela inicial falta de conhecimento sobre a doença.
Nos textos do mês temático sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus vamos entender o que revelaram os primeiros estudos sobre o vírus, o que sabemos hoje e o que ainda precisamos entender para controlar a doença.
Onde e quando surgiu o SARS-CoV-2?
O primeiro artigo reportando casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) na China causada por um coronavírus data de 30 de dezembro de 2019. Pouco tempo depois, em 3 de janeiro, o novo coronavírus chamado SARS-CoV-2, o agente causador desses quadros clínicos, foi isolado e identificado.
As primeiras tentativas de rastrear onde foi o primeiro contágio de um ser humano pelo SARS-CoV-2 indicavam que o mercado de peixes e animais silvestres em Wuhan, na China, teria sido o epicentro da doença. Para os cientistas, o vírus estava presente em morcegos e durante o manuseio da carne crua do animal, o vírus teria infectado o ser humano.
Porém, pesquisas mais recentes indicam que as primeiras infecções teriam acontecido já em novembro de 2019 e não tinham nenhuma ligação com frequentadores do mercado de Wuhan. Outra evidência de que as infecções aconteceram antes do que os cientistas inicialmente pensaram é que amostras de um paciente internado em dezembro na França deram positivo para o coronavírus. Isso poderia indicar que os casos na China já estavam acontecendo bem antes e pessoas assintomáticas levaram o vírus para a Europa. Segundo a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), é muito difícil saber com certeza quem foi e onde estava o paciente zero da doença, mas os indícios apontam que muito provavelmente o SARS-CoV-2 surgiu, sim, na China.
De onde veio o SARS-CoV-2?
Ao que indicam as pesquisas mais recentes, o vírus veio do morcego e de um outro hospedeiro intermediário: o pangolim (imagem 1). Segundo um estudo publicado no fim de março na revista Nature, este incomum mamífero seria um link entre morcegos e seres humanos. O que corrobora com essa hipótese é a semelhança entre o material genético do coronavírus encontrado nos pangolins e nos seres humanos. Os pesquisadores usaram amostras coletadas de espécimes de pangolins capturados nos anos de 2017 e 2018. Pelas análises de bioinformática, a semelhança entre o material genético do novo coronavírus humano e do coronavírus encontrado nos pangolins varia de 85,5% a 92,4%. O que ainda intriga os pesquisadores é que vírus respiratórios, como o SARS-CoV-2, são facilmente selecionados quando presentes em animais sociais, ou seja, que vivem próximos, porém, esse não é o caso do pangolim, que vive solitário.
Ainda na semana passada, cientistas publicaram um artigo na revista Science que também reforça esse cenário. Apesar de não explicar exatamente como o “pulo” do vírus SARS-CoV-2 para o ser humano aconteceu, eles acreditam – por meio de análises genéticas – que o morcego da espécie Rhinolophus é muito provavelmente o reservatório do vírus que posteriormente passou para o pangolim. O fato é que, em determinado momento, o coronavírus sofreu uma mutação em seu material genético, o que o tornou capaz de reconhecer e infectar o ser humano.
O sequenciamento do SARS-CoV-2
E falando em mutação, assim que o novo coronavírus foi identificado seu material genético (RNA) foi sequenciado rapidamente. O primeiro genoma depositado no GenBank (banco de sequências genéticas públicas) data de dezembro de 2019, de um paciente na China. Atualmente mais de 5 mil sequências genéticas de SARS-CoV-2 estão depositadas, inclusive a que foi sequenciada em tempo recorde por pesquisadoras brasileiras.
Se no início das pesquisas os cientistas conseguiam apenas analisar as características do vírus individualmente, hoje com esse volume de dados é possível traçar a rota pela qual a epidemia se espalhou no mundo, fazendo análises comparativas diversas. Sabemos, por exemplo, que o coronavírus detectado nos primeiros pacientes diagnosticados no Brasil (fevereiro de 2020) tem semelhanças genéticas com o coronavírus detectado na Alemanha, em meados de janeiro. Na Alemanha, os cientistas sabem que um empresário chinês visitou a cidade de Munique e lá iniciou a pandemia nesse país. Nos EUA, por exemplo, segundo as análises genéticas divulgadas na semana passada, o vírus circulante teve origens diferentes, com pessoas infectadas chegando da China, do Irã e do Reino Unido. Mais especificamente na cidade de Nova Iorque, os pesquisadores analisaram o genoma de 84 amostras e concluíram que além de casos vindos do exterior, a cidade também recebeu muitos casos de COVID-19 do próprio EUA, por o que eles chamam de “rota doméstica”.
Além disso, com as análises genéticas os cientistas também conseguem estimar o tempo pelo qual o coronavírus está circulando em uma determinada população, com base na taxa de mutação do vírus. Quanto mais diferente da sequência “original”, mais mutações são presentes e isso indicaria que o vírus já está evoluindo há um tempo. Diferentemente do que os cientistas inicialmente pensaram, o coronavírus já sofreu ao menos duas mutações associadas à agressividade da doença. Em março, pesquisadores da China descobriram que muito provavelmente a cepa que deu origem aos casos da doença está circulando em menor número, quando comparada a uma cepa derivada, menos agressiva.
Porém, o que ainda não sabemos é qual a pressão seletiva que está agindo no vírus e, portanto, como ele irá evoluir. Respondendo essa questão, teremos mais segurança no desenvolvimento de testes e de vacinas. Aliás, na próxima semana veremos como foi o avanço no diagnóstico e no entendimento da transmissão da COVID-19. Não perca!
Por Nathália de Moraes
Referências
[2] https://www.dw.com/en/how-deforestation-can-lead-to-more-infectious-diseases/a-53282244
[3] https://www.nature.com/articles/s41586-020-2169-0_reference.pdf
[4] https://www.dw.com/en/coronavirus-from-bats-to-pangolins-how-do-viruses-reach-us/a-52291570
[6] https://www.who.int/csr/don/12-january-2020-novel-coronavirus-china/en/
[9] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/nuccore/MT126808
[10] https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-03/fda-tcg030320.php
[11] https://academic.oup.com/nsr/advance-article/doi/10.1093/nsr/nwaa036/5775463
[12] https://science.sciencemag.org/content/early/2020/05/28/science.abc1917?rss=1
[14] Imagem em destaque: CDC – EUA
[15] Fonte da imagem 1: página do IUCN Pangolin Specialist Gropu (Facebook)