“O que você quer ser quando crescer?”. Provavelmente você já ouviu (ou vai ouvir) essa pergunta muitas vezes. Respostas comuns são: médico, advogado, engenheiro, … Mais raro é alguém dizer que quer ser professor. Isso porque, embora todos concordem que os professores são muito importantes, pois são eles que formam todos os outros profissionais, a profissão docente ainda é pouco valorizada no Brasil. Uma matéria publicada no final de 2020 na Folha de São Paulo, por exemplo, destaca que, de acordo com estudo feito pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os professores brasileiros recebem, em média, cerca de metade do salário dos professores de países desenvolvidos[1].

Ainda que a carreira não seja valorizada, há pessoas que se dispõem a fazer cursos de licenciatura (cursos que formam professores). O que os motiva a fazer esses cursos? Será que realmente querem ser professores ou são “forçados” a isso? Buscando responder essa pergunta, um grupo de alunos do curso de Licenciatura em Química da Universidade de Brasília (UnB), coordenados pela professora do Instituto de Química (IQ/UnB) Evelyn Jeniffer de Lima Toledo, estudou a motivação para ser docente dos seus colegas de curso[2, 3].  Para medir a motivação (o conjunto de fatores que leva uma pessoa a agir de determinada maneira) para ser docente dos licenciandos, foi utilizado um questionário com várias afirmações (Quadro 1). Para cada afirmação o aluno deveria marcar de 1 a 5 o quanto ele concordava com ela, sendo 1 = “discordo totalmente” e 5 = “concordo totalmente”.[2, 3]

Quadro 1. Afirmativas que compunham o questionário aplicado na ordem em que elas foram apresentadas aos licenciandos.

Afirmativa
1Eu já tive razões para cursar licenciatura; agora, porém, me pergunto se devo continuar.
2Eu curso licenciatura porque eu preciso.
3Eu continuo na licenciatura porque eu me sentiria mal se não terminasse.
4Eu curso licenciatura porque é um bom modo de desenvolver atributos pessoais que valorizo.
5Eu curso licenciatura porque ser professor reflete quem eu sou.
6Eu curso licenciatura pelo prazer que tenho quando converso sobre a docência.
7Acho que estou perdendo tempo no curso de licenciatura, não tenho motivos para prosseguir.
8Eu curso licenciatura porque sou pressionado a continuar.
9Eu continuo na licenciatura porque quero provar para as pessoas que sou capaz de completar o curso.
10Eu curso licenciatura porque eu considero que professor é uma profissão importante.
11Eu curso licenciatura porque eu sinto que nasci para ser professor.
12Eu curso licenciatura pela satisfação que eu sinto quando estou realizando atividades específicas da licenciatura.
13Eu curso licenciatura porque sofro uma pressão externa para prosseguir.
14Eu curso licenciatura porque eu sinto que ser professor é parte da minha missão de vida.
15Eu continuo na licenciatura para provar a mim mesmo que sou capaz de completar o curso.
16Eu penso em desistir da licenciatura.
17Eu curso licenciatura porque a escolhi como um modo de crescimento pessoal.
18Eu curso licenciatura porque eu me sinto feliz em poder ser professor.
19Eu curso licenciatura porque eu passei no exame e minha família me obriga a continuar.
20Eu curso licenciatura, mas preferia estar em outro curso.
21Eu curso licenciatura porque acredito que posso ser útil na vida de muitas pessoas por meio da docência e isso é relevante para mim.
22Eu curso licenciatura porque sinto prazer quando leio assuntos relacionados à docência.
23Eu curso licenciatura porque ser professor faz com que eu me sinta realizado.
24Eu continuo na licenciatura porque não quero que as pessoas me vejam como um fracassado.
25Eu continuo na licenciatura, mas estou infeliz no curso.
26Eu curso licenciatura porque pessoas me pressionam a continuar.
27Eu curso licenciatura porque ensinar é um prazer.
28Eu continuo na licenciatura porque me sentiria inútil na sociedade se não completasse o curso.
29Eu curso licenciatura porque acredito que posso contribuir com a melhora da educação no Brasil e isso é importante para mim.
30Eu curso licenciatura porque ser professor se adéqua aos meus interesses e valores.
Fonte: [3]

A princípio as afirmações parecem aleatórias, mas, na verdade, elas foram cuidadosamente construídas para abordar os seis tipos de motivação propostos pelos psicólogos Edward L. Deci e Richard M. Ryan no começo da década de 1980 quando ambos trabalhavam na Universidade de Rochester, Nova York, EUA (Box 1), sendo que para cada um deles há cinco afirmativas (Tabela 1).

Box 1. Breve explicação acerca da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, a qual foi o referencial teórico (o “óculos” que os pesquisadores escolheram para observar o fenômeno de interesse) da pesquisa aqui relatada.

Teoria da Autodeterminação
Num primeiro momento, podemos dividir a motivação em motivação intrínseca – a pessoa age de determinada forma porque isso lhe dá prazer. A motivação é algo interno a ela. – e motivação extrínseca – a pessoa age para receber uma recompensa ou evitar uma punição. A motivação vem por meio de um agente externo.Embora essa divisão inicial seja útil, Deci e Ryan sugeriram que uma subdivisão na motivação extrínseca de acordo com a proximidade dela em relação à motivação intrínseca, gerando uma escala de motivação, permitiria uma análise mais detalhada dos fenômenos[4]. Dessa forma, foi criado o continuum da autodeterminação, composto pela motivação intrínseca, os quatro tipos de motivação extrínseca e a desmotivação (que é a ausência de motivação) (Figura 1).  
Figura 1. Representação do continuum da autodeterminação proposto por Deci e Ryan. Fonte: [5]

Na motivação extrínseca por regulação externa, o indivíduo faz a atividade porque se o fizer receberá uma recompensa de um agente externo ou, se não o fizer, receberá uma punição. No caso da motivação extrínseca por regulação introjetada, não há um agente externo físico fazendo com o que a pessoa se comporte de uma dada maneira. A própria consciência da pessoa cumpre esse papel. A regulação identificada, por sua vez, inclui o reconhecimento por parte da pessoa de que aquela ação é importante, mesmo que não lhe conceda prazer. Por fim, a regulação integrada é aquela na qual a pessoa apresenta determinado comportamento porque o vê como parte do seu próprio eu. Esses tipos de motivação não são excludentes. Você pode cozinhar porque sente prazer em ver a “mágica” (na verdade, é Química) do cozimento dos alimentos acontecer (motivação intrínseca) e também porque gosta que elogiem sua comida (motivação extrínseca por regulação externa). Além disso, seu perfil motivacional em relação a uma determinada atividade pode mudar com o tempo.   Vale destacar que a Teoria da Autodeterminação não é a única ferramenta que pode ser utilizada para explorar o fenômeno da motivação. Outras teorias, como a de Metas de Realização[6] e a Social Cognitiva[7] também são empregadas. É possível, inclusive, utilizar mais de uma teoria no mesmo estudo – o que pode tornar os resultados ainda mais ricos – como feito por Lúcia Silva Albuquerque de Melo e colaboradores ao analisarem a motivação dos alunos de cursos de Ciências Contábeis e de Administração por meio das teorias da Autodeterminação e de Metas de Realização[8]. Caso você queria saber mais sobre a Teoria da Autodeterminação, pode acessar o site do Centro para a Teoria da Autodeterminação: https://selfdeterminationtheory.org/   

Tabela 1. Afirmativas que compunham o questionário aplicado agrupadas de acordo com o que elas pretendiam medir.

ConstructoItens
Desmotivação1, 7, 16, 20, 25
Regulação externa2, 8, 13, 19, 26
Regulação introjetada3, 9, 15, 24, 28
Regulação identificada4, 10, 17, 21, 29
Regulação integrada5, 11, 14, 23, 30
Motivação intrínseca6, 12, 18, 22, 27
Fonte: [2]

Embora pareça simples, a construção desse instrumento (o questionário) foi um processo longo e criterioso. Primeiramente os pesquisadores elaboraram as afirmativas, depois elas foram analisada por três juízes – não aquele do tribunal, mas sim uma pessoa especializada no assunto em questão – para avaliar se representavam corretamente os seis tipos de motivação e, por fim, essa versão piloto do questionário foi aplicada e os seus resultados foram analisados por meio de ferramentas estatísticas para verificar se o questionário estava adequado aos objetivos da pesquisa. Só então o instrumento foi efetivamente aplicado para obter os dados do estudo. 

A aplicação do questionário também não foi tarefa fácil. Não é todo mundo que se dispõe a tirar alguns minutos do seu tempo para responder a esse tanto de perguntas. Para contornar esse problema, os questionários foram aplicados durante a aula de algumas disciplinas. Com os questionários respondidos em mãos, os dados foram transferidos para uma planilha digital de forma que pudessem ser utilizados nos programas estatísticos. No caso, utilizou-se o IBM SPSS, um software comercial bem caro, mas também é possível fazer essas análises – embora nem sempre de forma simples – com outras ferramentas, como o R Commander, que é gratuito, e até mesmo o Excel, que é pago, mas já é bem comum. 

Como resultado, a análise estatística apontou que o questionário é adequado para estudar a motivação para ser docente dos alunos do curso. Além disso, os dados indicam que os alunos permanecem no curso não porque são obrigados por fatores externos, mas porque percebem a docência como algo importante, se identificam com ela e sentem prazer em se dedicar a suas atividades. Apesar dos resultados positivos, a evasão (saída dos alunos do curso sem que eles se formem) no curso apresenta níveis alarmantes[9], o que convida a se fazer mais pesquisas sobre o assunto.

Se você quiser saber mais, confira os artigos A motivação para ser professor: aspectos quantitativos e qualitativos e Licenciatura: escolha ou falta de opção ou entre em contato comigo ou com a professora Jeniffer (jeniffer.toledo@gmail.com).

Por Henrique do Nascimento Coutinho

henricoten@gmail.com

Referências

[1] Saldanã, P. (2020, setembro 8). Salário de professor de ensino médio no Brasil é metade da média de países ricos. Folha de São Paulo. Recuperado de: https://folha.com/7y19062q 

[2] Toledo, E.J. L.; Coutinho, H. N.; Galdino, A. S.; Machado, V. L. P.; Monteiro, F. S. (2019). A motivação para ser professor: aspectos quantitativos e qualitativos. Scientia Naturalis, 1 (2), 83-94. Recuperado de: https://periodicos.ufac.br/index.php/SciNat/article/view/2495  

[3] Toledo, E. J. L.; Coutinho, H. N. (2020). Licenciatura: escolha ou falta de opção. Revista Exitus, 10 (1). Recuperado de:  http://www.ufopa.edu.br/portaldeperiodicos/index.php/revistaexitus/article/view/1253 

[4] Decy, E. L.; Ryan, R. M. (1985). Intrinsic Motivation and Self-Determination in Human Behavior. Boston: Springer. Recuperado de: https://link.springer.com/book/10.1007/978-1-4899-2271-7 

[5] Rodrigues, B. V.; Toledo, E. J. L. (2017). O teatro na nutrição das necessidades psicológicas básicas: O caso da Licenciatura em química. [Trabalho completo]. In: Instituto Federal de São Paulo campus Sertãozinho, Anais do IX Encontro Paulista de Pesquisa em Ensino de Química, Sertãozinho, Brasil. Recuperado de: https://pesquisaemensino.wixsite.com/eppeq/anais-2017 

[6] Zenorini, R. P.; dos Santos, A. A. A.; Bueno, J. M. H. (2003). Escala de Avaliação das Metas de Realização: Estudo Preliminar de Validação. Avaliação Psicológica: Interamerican Journal of Psychological Assessment, 2 (2), 165-173. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5115859 

[7] Azzi, R. G. (2015). Autorregulação em Música: discussão à luz da Teoria Social Cognitiva. Revista da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais, 11 (2), 9-19. Recuperado de: https://revista.uemg.br/index.php/gtic-modus/article/view/1073 

[8] de Albuquerque, E. A.; Batista, F. F.; Albuquerque, L. S.; de Oliveira, F. D. C.; Pereira, G. M. (2016). Análise da motivação dos discentes do curso de Ciências Contábeis e Administração sob a perspectiva da Teoria da Autodeterminação e das Metas de Realização. Qualitas Revista Eletrônica, 17 (3), 1-21. Recuperado de: http://revista.uepb.edu.br/index.php/qualitas/article/view/3043 [9] Coutinho, H. N.; Toledo, E. J. L. (2019). A evasão no curso de Licenciatura em Química da Universidade de Brasília (UnB): uma breve análise da situação atual. In: Universidade Federal de Goiás, Anais do XVII Encontro Centro-Oeste de Debates no Ensino de Química, Goiânia, Brasil. Recuperado de: https://www.even3.com.br/anais/ecodeq/199029-a-evasao-no-curso-de-licenciatura-em-quimica-da-universidade-de-brasilia-(unb)–uma-breve-analise-da-situacao-atu/

Foto de capa: Element5 Digital em Unsplash

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